segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A Missão - Lariel Frota



     (Texto concorrente do Concurso Os Retratos da Mente)
      -Boa noite meu bem. Ainda trabalhando na decoração de natal?Acho que não cabem mais laços vermelhos nessa casa,   o Tony  já chegou?
            -Já, discutiu de novo com o irmão. Tá  trancado  no quarto com enxaqueca, disse que não vai  jantar! Todo ano é a mesma coisa, é só chegar dezembro pra esse menino  ficar de mal com a vida. Enquanto o Paul  todo  feliz, vê  beleza em todos os cantos, parece que ao Tony essa euforia natalina   é  veneno!
            -Calma querida, questão de personalidade! Eles discutem porque se gostam. Irmãos são assim mesmo,  daqui há pouco esquecem mais essa discussão,  que deve ter acontecido como das outras vezes,   por algum motivo banal.
            -O motivo não entendi, agora o Tony estava transtornado. Parecia outra pessoa!
            -Como sempre exagerada! Continue trabalhando nos seus laços cintilantes  enquanto tomo um banho. O trânsito hoje estava infernal. Ah estava brincando meu bem, seus laços a cada ano  ficam  mais perfeitos!
                                                           (….)
            Que fosse pro inferno o irmão com todas as conjecturas vazias, que fosse pro inferno as  falsas convenções da sociedade moderna que  não impõe regras, aceita comportamentos e crenças inúteis. Queria mesmo era mergulhar na penumbra que o envolve e atravessar para outro tempo, outra dimensão onde imperasse a verdade e não a hipocrisia desse bando de falsos cristãos, mergulhados em suas impurezas de costumes.
            Como nos  filmes de ficção, ou nas estórias fantásticas que o avô  contava, gostaria mesmo é de  viajar para o passado, viver  nas antigas  cortes da monarquia  inglesa, onde os lordes   realmente  mereciam os títulos de nobreza e as mulheres, ah as mulheres cobertas em trajes vitorianos podiam ser admiradas e sonhadas em todas as suas possibilidades.
            Que falta faz o avô, velho professor de história, que além das verdadeiras ensinadas nos bancos da escola, tinha tantas estórias para contar. Descrevia os séculos passados como se neles tivesse vivido. Falava da monarquia, das tradições e valores onde havia uma linha divisória muito clara: pobres e ricos, cultos e ignorantes, mulheres para amar e mulheres para usar, que as putas sempre existiram no mundo, mas houve tempo em que era muito fácil diferenciá-las das demais.
            Seria maravilhoso amar  as mulheres pudicas, com corpos guardados  em  longos vestidos de imensas golas de renda, que  davam ao amante  a possibilidade de sonhar, conquistar, desvendar deliciosamente aos poucos, cada um dos mistérios daqueles templos de recato.
            Não como esse bando de vadias moderninhas espalhadas por todo canto,  rebolando  traseiros avantajados, sacudindo peitos  de silicone  com sorrisos libidinosos,  vendendo de tudo, como a loirinha de shorts curtíssimo e justo, os seios quase explodindo pra fora do decote,  entrando porta a dentro da pequena gráfica  da família,  para fazer orçamento de uns panfletos promocionais.
-Por favor, pode me informar quanto fica o milheiro de um panfleto com essas palavras? Estou fazendo propaganda de natal para uma  clínica, pensei até no slogan: -“Faça  deste um natal fantástico para seu corpo”.- Olha os preços, não  são ótimos? Lipoaspiração,  redução de medidas, cirurgias plásticas, colocação de silicone, tudo parcelado em dez vezes!
Fora por causa dessa jovem a  violenta discussão com Paul o irmão mais novo, e a  crise de enxaqueca que o está enlouquecendo. Para  piorar a dor,  as malditas luzinhas nas árvores da avenida  invadem a penumbra do  quarto, piscando, piscando, piscando. 
Precisa do escuro total, esse acender e apagar acontece no mesmo ritmo do latejar das suas têmporas.  A  cor vermelha da iluminação   do imenso papai Noel  no out dor da esquina, invade o conforto escuro  da sua cama. É do mesmo tom do batom da loirinha descarada de  boca carnuda, se rebolando inteira, cara de safadeza explicita, e o pior  fantasiada de “papai”  Noel com   a  minúscula roupa de  tecido vermelho, gorro na cabeça, botas pretas de cano alto.
            Quando saiu da gráfica deixou o rastro de perfume doce enjoativo que  deflagrou a crise de enxaqueca,  agravada depois   pela   discussão com o irmão. 
 Ao comentar sobre a figura extravagante e vulgar, ouviu o monte de baboseiras de sempre: que ele não tem apego a nada, que não vê nada bonito na cidade enfeitada, nem o quanto  é belo o espírito de natal  em todos os cantos nessa época do ano,  que papai Noel  é símbolo de alegria e confraternização,  bla, bla, bla….
            Comemoração por que? Quase ninguém de verdade  conhece aniversariante.  Essa falsa alegria acontece porque lá pelo ano 280 depois  do  nascimento do tal menino, um bispo da Turquia chamado Nicolau, começou a distribuir saquinhos com moeda para os mais necessitados.  Depois de morto o bispo virou santo e inspirou a invenção desse velhinho safado que só serve mesmo para encher os  cofres dos comerciantes. A tradição de dar presentes não tem nada a ver com nascimento nenhum,  só ocorre  em dezembro porque um comerciante, muitos séculos depois de Nicolau,  com  um estoque de meias encalhado  resolveu inventar uma propaganda,  promovendo o desencalhe da mercadoria, que pelo jeito deu muito certo.
            Quanto mais pensa, mais a cabeça lateja de dor. Precisa dormir, desesperadamente precisa dormir, vai tomar três  analgésicos, não apenas um.
Talvez  ao acordar a   crise tenha ido  embora. Quem sabe  colocando um pano escuro na janela, o tal pisca pisca das malditas  luzinhas e o jato de luz vermelha do  Noel  ridículo  lá de fora,  não incomode tanto. E esse perfume enjoativo que ainda permanece intenso?  Já tomou banho, limpou as narinas  com  soro fisiológico e nada. O cheiro está ali, invasivo como a loirinha vulgar que entrou rebolando   na recepção da gráfica balançando os seios falsos.
                       ----------------------------------
-Tony… Tony acorde. Já dormiu o bastante. Você tem um prazo a cumprir,  vamos rápido levante dessa  cama. A missão espera, não se esqueça que a Rainha Vitória pessoalmente escreveu a ordem nesse pergaminho.
Dizendo isso a figura altiva aponta para a mesa de cabeceira, onde ao lado do estojo com o antigo punhal que pertencera ao avo, está o documento manuscrito,  identificado pelo brasão  da corte,  com  as instruções:
1.      Você  teve  seu desejo atendido. Viverá faustamente como lorde na corte da rainha Vitória o resto dos seus dias. Terá prestígio e admiração de muitos.
2.      Para que isso se concretize você só precisa cumprir fielmente sua missão. A figura que deturpou a história tem que ser destruída.
3.      Ao sair dos seus aposentos você começara a regredir no tempo até chegar ao ano 270  D.C. Não deixe que nada o interrompa. Talvez precise caminhar um pouco até alcançar a data onde encontrará o jovem Nicolau. Será a chance de impedi-lo seguir a vocação religiosa. Leve-o a uma taberna e faça-o ingerir vinho, ficará mais fácil incentivá-lo a entregar-se ao prazeres da carne, afastando-o da sua vocação, assim São Nicolau nunca  existirá.   E você terá mudado o rumo da  história.
4.      Pode ser que tentem impedi-lo. Você terá dez horas para cumprir sua tarefa, nem um minuto a mais.  Como arma só poderá utilizar o punhal centenário  que pertenceu a seu avô. Ele veio parar nas suas mãos justamente   para  facilitar sua   missão.
                                      (….)
Precisa vestir-se sem fazer barulho. Se a mãe que tem sono leve  ouvir qualquer ruído certamente tentará impedi-lo de sair, ainda é madrugada. Ela tem medo de tudo, vê perigo em qualquer situação, quer existam de fato ou não.
O pai anda contaminado convivendo com a insegurança dela durante anos, o irmão mais novo é um imbecil. Ao contrário dos pais  só vê  bondade, boas intenções ao seu redor.Não enxerga um palmo adiante do nariz no quesito mundo real. Pra ele não existe maldade ou pecado. O idiota chegou a achar infantil o traje minúsculo da loirinha de boca carmim travestida de Noel.
Cuidadosamente sem fazer ruídos, apanha no maleiro a caixa onde está  a fantasia do último baile de mascaras que usara na faculdade.  É um traje inspirado naqueles usados em festas nos grandes castelos da Europa nos séculos passados, bem apropriado para a tal missão. É certo que há detalhes exagerados, como as franjas das botas.  Talvez cortando-as  fiquem adequadas. Optou por dispensar o chapéu, tem adereços demais. Basta a roupa em tons sóbrios para fazer com relativa  segurança sua viagem ao passado, mudar os planos de Nicolau.  Não  ingressando na vida religiosa, não dará inicio a tradição de dar moedas aos pobres, consequentemente abortando   a figura ridícula do tal  Noel some todo  esse inferno em que  se transformou o mês de dezembro no terceiro milênio.
Olhando-se no espelho fica satisfeito com o que vê. Só falta um detalhe, colocar no bolso o pergaminho assinado pela própria rainha Vitória.  Quando viajar de volta até  1840 com a missão cumprida, vai apresentar-lhe o pergaminho e relatar o sucesso da sua empreitada.       
                                          (….)

-Coisa pavorosa esse caso. Conseguiram encontrar explicação pra tanta violência?
-Nada! Ninguém compreende a loucura do rapaz. Deve ter sofrido  um  surto psicótico.
-Mas esse Tony tinha problema de  cabeça? Usava drogas, bebia?  Ninguém percebeu nada  que indicasse que estava saindo do  controle?
-Conseguimos poucas informações junto a pessoas próximas.   Desde criança sempre foi muito quieto, não era de se enturmar. Tinha uma grande afeição pelo avô, um professor de História da Civilização,  talvez a morte do velho tenha colaborado pra essa  a crise de loucura.
-Pode ser. Um vizinho  afirmou que a arma com a qual cometeu a chacina, pertencia ao  avô.
-É. Parece que desde pequeno sofria de enxaquecas terríveis que vinham piorando muito nos últimos tempos. Uma amiga da família   informou que a mãe desanimada por não encontrar solução na medicina, recentemente  o tinha levado a uma benzedeira.
                -Vai ver isso acabou piorando as coisas. Veja esse    pobre      homem,
                morreu dormindo!  Não há sinais de defesa. A mãe deve ter acordado na hora
                do ataque, os braços e mãos estão  bastante machucados. Lutou muito pra
               não morrer!
-O que deve ter despertado o irmão mais novo coitado. Morreu no corredor  esvaindo-se  em sangue,  com os genitais  quase decepados  pelo punhal.
-O que não dá pra entender é a fúria com o qual esse tal de Tony  foi atacando todo mundo pela frente. O que significa as  tirinhas de couro cortadas ao lado da cama  dele?
-Mais um mistério,  eram enfeites da bota que estava usando. Sabe-se lá porque cortou antes de cometer essas barbaridades.  Depois de matar a família,  feriu gravemente um pobre velhinho vestido de papai Noel indo pro trabalho no comércio, matou o segurança que tentou impedi-lo de destruir uma arvore de natal na vitrine do shopping.  Foi atacando com  golpes violentos quem encontrasse pelo caminho.
-O que não dá pra entender é como chegou tão longe, do outro lado da cidade pra matar a pobre criança indefesa.
-O garotinho fantasiado de papai Noel indo para a festa de encerramento de ano  na escolinha.
-Isso, de nome Nicolau Henrique da Silva, cinco anos o pobrezinho!  Teve a cabeça decepada. Definitivamente não dá pra entender  uma tragédia  dessa proporção. Se o policial não tivesse estourado a cabeça desse doido, sabe-se lá quanta gente mais teria matado.
-Não há carta,   bilhete, ao algum   recado no meio das coisas desse maluco?
-Nada. Apenas um papel enrolado dentro do bolso da fantasia que usava. Tem um desenho que parece de um santo, e  algumas palavras escritas a lápis, parece  uma reza.  Deve ser da tal benzedeira pra  onde foi levado pela mãe  por conta das enxaquecas. Leia  você mesmo:

…..abra-lhe   os caminhos pra cumprir sua  missão nessa vida, livra-o dos maus pensamentos, perdoa os pecados da carne e do espírito…assim seja!
                                                                  Mãe Vitória

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