sexta-feira, 25 de março de 2016

Xadrez Tridimensional – Danny Marks


          O de Preto, como as peças que movimentava, sacou um charuto e pôs-se a acende-lo com um longo ritual, repetido tantas vezes em outros momentos, que, segundo ele, ampliava o sabor do momento. O de Branco, como as peças que movimentava, entendia de rituais também, mas alguns simplesmente abominava. Naquele momento não disse nada, apenas estudava o movimento do seu adversário no intricado jogo que se estendia em vários tabuleiros dispostos em plataformas que se justapunham em crescente espaço e importância, segundo as regras estabelecidas.
          — Interessante que tenha elevado um dos peões à torre. — disse o de Branco — mas isso não impede o movimento da minha rainha, como pode ver.
          — Com todo o respeito a sua posição, não tente compreender as minhas jogadas, caro colega, as tenho desenvolvido há tempos, antes mesmo que você assumisse o lugar de jogador. Não estou interessado na sua rainha louca, neste momento. Não me julgue de forma tão superficial.
          — Com o devido respeito, caro colega, talvez o fato de terem me alçado à condição de jogador se deva ao fato de que se faz necessário uma renovação das estratégias, uma nova abordagem, por assim dizer. Creio que não há mais espaço para jogadas antigas, embora lhes reconheça a força; mas, como dizem lá em cima “Outros tempos, outras soluções”!
          — Nobre amigo, já estive com adversários que vieram com as mesmas falas que as suas, todos almejavam “novos rumos” e se acreditavam capazes de solucionar qualquer intervenção que eu pudesse fazer. Provou-se que as coisas não mudaram tanto assim, continuo sendo o vencedor.
          — Tudo é uma questão de perspectiva, nobre amigo. Perceba que as suas aclamadas vitórias, parciais, diga-se de passagem, foram as causadoras da situação atual que abrange todos os tabuleiros. Está novamente desconsiderando os fatores externos; um erro, me perdoe o trocadilho, “clássico”.
          — Bobagem, historicamente tenho enfrentado esse fator externo com tranquilidade e avançado apesar dele, deveria ter estudado melhor os jogos anteriores.
          O de Branco se recostou na confortável cadeira depois de ter elevado um dos bispos para um patamar mais elevado, alterando a dinâmica do jogo de forma global, suas peças locais estavam situadas exatamente onde queria, embora dessem a impressão de que estivessem fragilizadas em suas posições. Tomou uma taça de vinho que lhe serviram, bebeu apenas um gole e a devolveu a bandeja, antes de responder ao adversário.
          — Esse tem sido o seu erro, na minha interpretação. Tem se apoiado em velhas soluções para resolver novos problemas, mas as coisas não são como antes, sabe disso. Sim, claro que estudei os jogos anteriores, até para poder fazer melhores projeções e verificar as tendências da evolução das peças.
          — Evolução! Vocês novos estão sempre apontando a evolução como algo que pode desestabilizar a balança, mas o fiel continua sendo o mesmo. Eu comando a evolução! Eu digo o que vai evoluir e o que vai simplesmente desaparecer, não existe acaso no meu jogo.
          — Não se pode burlar a evolução, no máximo retarda-la! Como tem feito sistematicamente, mas tem esquecido que o motor principal da evolução é justamente a sobrevivência. Há regras que podem ser quebradas, distorcidas, manipuladas, mas há regras inflexíveis e é preciso lidar com elas com cuidado.
          — Esse é um discurso covarde, caro jogador, veja a sua situação! Ela reflete exatamente a fragilidade da sua estratégia — em um movimento conseguiu converter vários peões brancos em peões negros, diminuindo ainda mais a vantagem do adversário nesse patamar.
          — Eu invejo a sua estratégia de criar o caos para controlar melhor os mecanismos, mas entenda, há outras formas de se lidar com o caos e a destruição. O cenário geral exige atitudes radicais que não creio que esteja preparado para entender. — Um novo movimento com os peões brancos aliciou vários peões negros no que levou a queda de duas torres e projetou a derrocada de uma outra torre, mais ampla e difusa, em algumas jogadas a frente. O movimento especulativo foi observado pelo adversário que apagou raivosamente o charuto no cinzeiro que lhe foi oferecido.
          — Você não pode fazer isso, vai afetar também as suas jogadas! O que é isso? Alguma jogada suicida com a sua rainha louca? Eu permiti que alçasse esse peão à rei, não entendeu ainda que essa era a MINHA jogada, não a sua?
          O de Branco gargalhou alto e provocou um olhar de reprimenda dos outros jogadores que estavam no local. Conteve-se e baixou a voz, em tom quase confessional, aproximando-se do adversário que, sabia, iria derrotar em breve.
          — Não, nobre adversário, você é que não percebeu que há um objetivo mais amplo em jogo, não basta vencer, ou mesmo trocar as peças e manter as estratégias. Não, é algo muito mais complexo do que possa alcançar, por isso será substituído. O que está em jogo não é a sobrevivência das peças deste tabuleiro, nem mesmo deste jogo. Tudo isso está para mudar. De que adianta continuar com estratégias ultrapassadas quando o próprio tabuleiro está mudando e exige manobras que as regras anteriores não podem prever?
          Pela primeira vez o de Preto sentiu medo. Observou atentamente as posições globais e deu-se conta de que havia perdido, embora suas posições fossem aparentemente as mais favoráveis. Não havia percebido que os organizadores haviam decidido as coisas há muito tempo e que fora apenas mais um peão elevado a uma posição privilegiada e que seria sacrificado em estratégias que nem conseguia alcançar, quanto mais entender.
          Começou a observar que, ao contrário do que poderia ter imaginado antes, o caos que provocava promovia um determinado tipo de ordem, resistente e concentrada. Olhou as bordas dos tabuleiros e percebeu que em todos os níveis havia uma sistemática destruição de peças e realocação de tantas outras. Seus longos anos de jogador haviam lapidado a sua percepção de jogadas limítrofes, ele mesmo se valera de várias delas ao longo das partidas, mas nunca havia visto algo de tamanha proporção, só podia imaginar alguns indícios do que estava por vir e sabia que o seu fim estava próximo. Algum outro jogador, mais preparado para os novos tabuleiros, que seriam montados com novas estratégias, iria substitui-lo. Não havia como vencer quando a sua derrota estava determinada pelos Organizadores.
          Deixou que outra torre fosse desmontada pelo adversário, até colaborou com isso. Recolheu uma taça de vinho que lhe ofereciam e bebeu lentamente. O gosto não lhe pareceu muito bom, desta vez, mas fingiu que estava tudo bem.
          Poderia ser derrotado. Seria derrotado, era inevitável! Mas não entraria para os registros como um covarde que entregava o jogo no momento que descobria a jogada final. Cairia como um rei, de forma majestosa, assassinado em seus aposentos mais íntimos por algum maldito traidor que havia ajudado a criar.
          Seu próximo movimento foi ousado, com um sorriso feroz a estampar-lhe as faces. Não pode deixar de notar o leve tremor nas mãos do adversário. Talvez ele também tivesse feito suas projeções e, quem sabe, entendera melhor qual era o seu verdadeiro adversário.
O de Preto iria garantir esse entendimento, o prazer de um condenado era saber que o seu inimigo logo estaria no mesmo calabouço onde foi executado.

Esse não era um jogo para amadores.

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